Poeta: sujeito que costuma comparecer aos próprios desencontros.

Manoel de Barros


segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Lembrando uma velha "canção" de Afonso Lisboa....


AURORA DA MELODIA COM O MELODIA DA AURORA. 
Melodia do tempo, tempo do Melodia

Afonso H Lisboa da Fonseca, psicólogo.


...um “ser subterrâneo” a trabalhar, um ser que perfura, que escava, que solapa. Ele é visto – pressupondo que se tenha vista para este trabalho na profundeza – lentamente avançando, cauteloso, suavemente implacável, sem muito revelar da aflição causada pela demorada privação de luz e ar; até se poderia dizer que está contente com o seu obscuro lavor Não parece que alguma fé o guia, algum consolo o compensa? Que talvez queira a sua própria demorada treva, seu elemento incompreensível, oculto, enigmático, porque sabe o que também terá: sua própria manhã, sua redenção, sua aurora?... Certamente ele retornará: não lhe perguntem o que busca lá embaixo, ele mesmo logo lhes dirá, esse aparente Trofônio e ser subterrâneo, quando novamente tiver “se tornado homem”. Um indivíduo desaprende totalmente o silenciar, quando, como ele, foi por tão longo tempo toupeira, solitário --
(F. Nietzsche, em Aurora)


Canta o Melodia, no rádio...
É Estácio...
Há tempos que me deslumbro, e desbundo, com Estácio... Sem pré e sempre que escuto...
Inevitável passar pela cabeça... ‘De novo’, o Melodia, cantando ‘Estácio’...
E me disponho alegremente a escutar...
...
É uma interpretação nova, sutilmente -- mas só sutilmente – diferente.
Com uma cantora... Esta é uma novidade. Com uma cantora...


Desde sempre, o grande no Melodia não é, exatamente, o conteúdo – apesar do fantástico, sempre, das letras. Quase que o conteúdo é sempre um coadjuvante, em termos do Melodia. O grande astro, a grande arte, é sempre a da interpretação. Da elaboração, do refinamento, da sofisticação rítmica da interpretação.
Quando comecei a ouvir o Melodia, ele cantava, Meu nome é Ébano !!! ... E me parecia incrivelmente próprio, já então. Porque era ebânea a voz, a interpretação, do Melodia. Era muito madeira...
Depois a gente percebe que a voz do Melodia pode ser metálica. E depois sai descobrindo que é rococó, é barroca, é unitariamente cortante, é múltipla, e singular, até poder chegar, por exemplo, ao guincho do negro gato (em teto de Zico quente), passando naturalmente, por exemplo, pelo Codinome ‘beijaflor’...
A verdade é que o Melô dispõe desta incrível arte de demonstrar as surpreendentes nuances possíveis do infinito -- precisamente, ou, melhor diríamos, imprecisamente, entre o zero e o um. Parece esta a sua grande arte, movimentar-se, rítmica e poiéticamente, entre o zero e o um. E, por aí, demonstrar que a arte, tanto na arte formal como na existência, só é arte na medida em que a forma pode se dar o infinito como fundo, e, enformar-se, performar-se, perfazer-se, contrastando, contra a indeterminação e o infinito, o contorno de suas provisórias e precárias limitações... Demonstrar a formação, de modo meticulosamente rítmico, surfando e brincando com o incerto, com o indeterminado, com o rigorosamente improvável da potência formativa do possível, poiética... indeterminando que o infinito é tal e qual, tanto entre o zero e o um, como para além do fim dos números...
E lá está todo frescor e todo o incrível vigor, e dignidade enxuta, e marotamente risonha, do Estácio...
Que há cerca de trinta anos escuto o Melodia cantar...
Só que diferente, agora, sutilmente diferente, mas decididamente...

Lembro o comentário de um amigo. O Melodia é legal, mas não inova, são sempre as mesmas músicas...
Verdade...
Parece verdade...
Mas, comigo, eu discordava em algo, que eu não entendia muito bem...
Inicialmente, não sei muito por quê, mas, meramente, porque contraria os meus sentidos, ainda que tenha lógica...
Há uns trinta anos, ou mais, escuto o Melodia, como disse. Desde os tempos em que eu o ouvia, didático, deliciado eu, no rádio, num apartamento de hotel, no cálido início de um verão no Rio,


Sabe gente...



É tanta coisa pra gente saber...
O que cantar 
como andar
onde ir...
O que dizer o que calar...
A quem querer...



Sabe gente...



É tanta coisa que eu nem posso saber...
Sou eu sozinho e este nó no peito...
Já desfeito em lágrimas


Que eu luto pra esconder...





Sabe gente...



Eu sei que no fundo o problema é só da gente
É só do coração dizer Não!



Quando a mente tenta nos levar
P’rá casa do sofrer
E quando escutar uma samba canção...
Assim como...
’Eu preciso aprender ser só...’
Reagir... e ouvir... o coração responder...
Eu preciso aprender a só ser...

(De memória, não sei bem se está correta e completa a letra...)

Só reticências... Por que é certamente impróprio pôr vírgulas, pontos, ponto e virgulas, ou mesmo qualquer tipo de sinal ortográfico numa letra que o Melô canta. Ainda que exista nele uma incrível arte da vírgula, do ponto, da reticência, do ponto e vírgula, dos dois pontos... Invisíveis, implícitos... Mas, decididamente evidentes... A pontuação escrita é a do mundo dado. A interpretação, a interpretação do Melô, é o dar-se alegre do mundo. É o acontecer, que não se dá em contraposição ao acontecido, é a pontuação. O dar-se da pontuação, única, irrepetível. Nada a ver com a pontuação dada.
E é assim que entre o zero e o um existem múltiplas potências, possibililidades, poderes de ser de formas, que querem vir a ser; e, na verdade, existe o infinito...
Existe, em particular, o jogo da incerteza, que o gesto, a gest-ação, vai preenchendo à medida em que, rigorosamente impreciso, evolui como ato, atu ação...
No tempo de uma vírgula existem mil tempos na interpretação do Melodia. Mil jeitos, mil passos e compassos, vividos, dobras e contorções, de um corpo, membros, gestos, alegremente animados.
Não que sejam “mil”... É que são únicos, vividos, singularmente temporalizados, e originais, na sua singularidade e unicidade, na multiplicidade de sua potência sem vergonha...
Na verdade, e especificamente, “dribles de corpo” na consciência (como diria o Chico). E reviravoltas, propriamente, de quem vivo está na, inevitável, decadência do tempo.
Porque tempo e consciência são antinômicos.
A consciência é sempre, e cada vez mais e mais, sem tempo, sem presente, sem presença.
Fazemos concessões à consciência, mas ela é o coveiro do tempo. Do tempo digo como temporalização real, vivida, que é temporalidade encarnada do corpo, da vivência embriagada e dos sentidos... Que necessariamente se dão na embriagues concrescente do vivido... Vivido que é sempre “tomada de inconsciência”, porre de afirmação, e imposição prazenteira da forma dissolvendo-se ritmicamente no infinito da potência como fundo...
Tempo vivido de um corpo, que não se conforma em ser desditado pelo acontecido. Mas que pertinaz e permanentemente, alegre e potentemente, se rebela contra o acontecido, contra o passado; se assume, digere e administra o acontecido, ad-ministra a potência do tempo, gerando-o e regenerando, digerindo e metabolizando a decadência.
E o que seria da vida não fossem os “dribles de corpo” e as re-voltas e re-vira-voltas corpo-ativas na decadência do tempo...
Diz o Chico que o “drible de corpo” é quando “o corpo tem presença de espírito.” (Monumental...). E, corpo, voz, e ritmo do corpo, o Melodia é um... espirituoso... Rigorosamente impreciso, o corpo do Melodia, decididamente, tem presença de espírito. Não apenas o corpo que motoramente dança, mas o corpo que canta. Que canta e dança na embriagues de ritmos singulares, únicos...
Um corpo que dança, que se faz voz e canto; uma voz que dança, um corpo que canta; um canto que, de voz e ritmo, dança, e se constitui em rítmicas, e vividamente vividas, circunvoluções, serpenteamentos, passos e compassos. Animações de um corpo, e da articulação de um corpo, e de cada uma de suas muitas segmentações. Um corpo que musicalmente gesta, anima-se e se alegra em voz – e que voz! -- corpoativa; uma voz que se infiltra capilativamente no corpo que se alegra de meramente existir em sua potência própria e singular... E dança a sua dança.
E quem, de fato, “dança”, então, nos dribles de corpo do Melô, com a bunda no chão, e termina por sucumbir na brincadeira, é a própria, e inevitável, decadência do tempo... Que não resiste à superabundância da emergência rítmica da alegria...
Enquanto o retorno, o eterno retorno, da força do tempo, regenerado, retorna, e, malandramente, segue, sonora e corporalmente serpenteando... Pé ante pé, mão equilibrante e rítmica, maestro do poético da potência do tempo. ... Camisa azul, branca e preta, aberta no peito, contra a pele escura...
Há trinta anos que ouço o Melodia... E se eu vir um disco do Melodia, corro para escutar. Se eu souber que ele vai cantar, não perco...
E vivo o show como a experiência alegre, e não raro eufórica, de um ritual de tempo rítmico, novidade, e de alegria... Um momento de suspensão na decadência do tempo ‘coisa’. Em que cada momento é da ordem e do vigor do outro tempo (temporalidade do tempo que não decai, fonte inexaurível, já dizia Lao Tsé), que dribla e costura a decadência, e vai ao fundo do poço de sua regeneração, e retorna sempre, com água límpida e fresca, em suas serpenteantes e imprecisamente rigorosas, caprichosas, mesuras... E desmedidas.
A decadência do tempo -- sempre tão arrogante e segura de si em suas formas paradas, poderosa, não tem vez com o Melodia -- termina sempre “de bunda no chão”, zonza, com os espirituosos dribles de corpo do espirituoso..

Quando o corpo se anima, a consciência, tão pressuposta soberana, e arrogante, vai se afastando, vai ficando pequenininha, pequenininha, lá embaixo. Tá lá... Mas vai se relativizando, se metamorfoseando, encontrando o seu lugar, e sendo tão adornada pela vivência de movimentos e sonoridades do corpo alegre e vivo. Tanto se relativizando, que não seria reconhecida...
Como se na sua cinzentice se lhes pintasse cores, flores, coloridos diademas, arco íris... Um chapéu de Panamá, um carrinho de mão de madeira, e uma cestinha de frutas coloridas... Como se sua imobilidade começasse a ser abalada e desfeita, liquefeita, e refeita, fundida pela tensão rítmica da atualização da potência do possível na ação dançante...

De modo que, na sua arte, o Melodia vai dando conta, assim, alegremente, da decadência do tempo.

Firme aí, Estácio! Que, pelo menos enquanto o Melô cantar, você não decairá. Um dia decairá, um dia, decerto, decairá... Mas quando for tempo...
E é tempo todo tempo... Para, por fim, decair, inclusive.

A vida muda lentamente, como a cor dos frutos...
A vida muda rapidamente, como a flor em fruto
Mas quando é tempo

E é temo todo tempo, 



Mas não basta um século para fazer a pétala... 
Que um só instante faz, ou não. 
Mas a vida muda... (Gullar).

Regeneram-se e se revigoram as figuras do Melô; e revigoramo-nos e regeneramo-nos nós.
Precisamente isto é o que o Melodia é, um intérprete!
Regeneramo-nos com a regeneração do tempo.
Como aquela “Magrelinha”,

O pôr do sol



Vai renovar brilhar de novo o seu sorriso
E libertar 
da areia preta e do arco íris 
cor de sangue 
cor de sangue 
cor de sangue 
cor de sangue
O beijo meu vem com melado decorado cor de rosa
O sonho seu vem dos lugares mais distantes
Terra dos gigantes
Super homem 
super mosca
super carioca 
super eu 
super eu
Deixa tudo em forma
É melhor nem sei
E não tem mais perigo digo já nem sei
Ela está comigo só eu só nem sei
O sol não advinha 
Baby é magrelinha
O sol nem advinha 
Baby é magrelinha
No coração do Brasil
No coração do Brasil 
Baby é magrelinha
No coração
no coração
no coração do Brasil
Baby é magrelinha
Baby


O Melodia brinca, assim, com as palavras decaídas, com as letras, com as músicas decaídas, com as idéia e inspirações, momentos, decaídos. Com as palavras, letras, músicas em seu decaimento. Porque é simplesmente vivo, e, simplesmente, a sua arte é a de dar-lhes vida. Vida mesmo. Atualizá-las. Atualizarmo-nos. Vivificar-lhes, do fundo do poço da regeneração do tempo. E por dentro de sua carcaça enrijecida vai retorcendo-se e retorcendo, do fundo do poço do tempo, e reanimando-as, enquanto efemeramente nos deleitamos com as suas interpretações.
Um poema, uma poética, são eternos, enquanto haja quem queira, e possa, interpretá-los, atualizá-los.  Ao interpretar, fazê-lo efetivamente, animando de possíveis, sempre. Dar vida, animar, reanimar, regenerar, sempre e sempre, aquilo que lhe é querido, e que é como tudo, e sempre, reivindicado pela decadência, pela degradação, do tempo. E esta é a arte do Melodia, Negro Gato -- safado. Safado da decadência do tempo.
Assim não interessa que repita e repita, e o quanto sempre bem humoradamente repita. Em particular, porque não é repetição nunca. Desde que os tempos possam ser regenerados, e se manifestem em vital, sonora e rítmica, corporal, ação, atualização. Gestação. A potência da gestação da forma, da performance, da performação, contra a decadência do tempo.