Poeta: sujeito que costuma comparecer aos próprios desencontros.

Manoel de Barros


sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Força Estranha

Eu vi um menino correndo, eu vi o tempo... brincando ao redor do caminho daquele menino, 
Eu pus os meus pés no riacho, e acho que nunca os tirei. O sol ainda brilha na estrada que eu nunca passei.

Eu vi a mulher preparando outra pessoa... o tempo parou pra eu olhar para aquela barriga.

A vida é amiga da arte; É a parte que o sol me ensinou. O sol que atravessa essa estrada que nunca passou. Por isso uma força me leva a cantar, por isso essa força estranha no ar. Por isso é que eu canto, não posso parar. Por isso essa voz tamanha.



Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista... o tempo não pára no entanto ele nunca envelhece.

Aquele que conhece o jogo, o jogo das coisas que são. É o sol, é o tempo, é a estrada, é o pé e é o chão.

Eu vi muitos homens brigando. Ouvi seus gritos... Estive no fundo de cada vontade encoberta.
E a coisa mais certa de todas as coisas, não vale um caminho sob o sol. E o sol sobre a estrada, é o sol sobre a estrada, é o sol. Por isso uma força me leva a cantar, por isso essa força estranha no ar. Por isso é que eu canto, não posso parar. Por isso essa voz tamanha.

(Força Estranha - Roberto carlos)

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Só... você.



Em época de Big Brothers, Reality Shows de roupa, cabelo, design, decoração, parto, casamento, festa de 15 anos, sexo, música... Em época de wikileaks, dos segredos de Estado revelados, cuidado ao olhar para o lado! Qualquer um com celular, pode lhe jogar na rede... Assim caminha a nossa risonha e reveladora geração...

Essa eu fiz pra todos nós, a partir das inquietações de cabeceira de Baia, e sua imensa alma questionadora... E se eu não quiser ter seus segredos revelados no meu celular? E se eu quiser guardar segredo?...   E se eu quiser calar?  


Só... você.

Agora, fala!  Conta tudo!
Senão, conto por você!
Seu segredo já está na rede. 
O seu sonho de só, ser...
Já sabemos o seu nome,
A sua cor, o seu amor...
Já sabemos dos seus sonhos,
Dos seus enganos, sua dor.
Já sabemos de você...
Conta! O que ainda não contei.
Como foi que aconteceu;
O direito que perdeu;
De não ter que contar mais nada;
E poder ser só... você.

Bianca Becker 



Ps. Sobre as tais anotações de cabeceira de Baia? 

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Zélia Duncan - Chega Disso

Chega Disso!


Chega dessa chaga, chega dessa forma, dessa farda
De qualquer forma chega, desse trauma de ser Cristo
Vira o disco, chega deixa disso, chega.


Desse luto nega, chega junto muda de assunto
Chega desse "sinto muito"
De tanta sala fechada
Tanta fala calada, tanta água parada


Nega chega de chá, enxagua, chega de só, sofá.
Deixa o sol chegar, chega que chega já
Chega de será? Que será?
Chega com tudo, vem com tudo
Chega se aconchega, desse nada! Chega!
Desse pobre horário nobre, desse porre
Nega chega!


Desse morre, não morre!
Chega de socorro, me socorre!
Desse morre não morre!
Chega de socorro, se socorre!
De tanta sala fechada
Tanta água parada, nega



(Alzira Espíndola e Arruda)

domingo, 5 de dezembro de 2010

Ode ao Prozac

Num mundo de pílulas da felicidade, anti-stress, anti tristeza...
Mundo da anestesia da vida, eis que não temos mais o direito de sermos tristes.
Não temos o direito de parar, de não querer, de não fazer, de não pensar...
No mundo da pressão e da pressa, não temos o direito de não tentar.
De parar tudo pra abraçar a dor.
Quem sofre é menos. Pois sofrer é para os fracos.
(ou para os frascos?)
Viva a alegria enjaulada num frasco de euforia!
Sofrer tornou-se feio num mundo que tem medo de chorar.
Mundo que tem medo de sangrar.
Medo de não dar conta da própria dor.
No mundo do medo, fugimos da lágrima na mesma intensidade em que perseguimos o riso.
No mundo do barulho, do axé, da ditadura alegre chamada carnaval, a dor do silêncio é feia.
E ser feio é proibido. Ser triste é proibido.
Chore, mas chore escondido, chore trancado no quarto.
Pois se lhe descobrirem chorando... Ah...........
Você só pode estar doente.
Aí o domínio de sua dor deixa de ser seu,
passa a pertencer à medicina do Prozac.
O nome da dor é Depressão.
E para Depressão? Prozac!
Não importa o porquê,
Não importam as origens...
Não importa o para que...
Dê prozac ou qualquer outra pílula mágica.
Traga o que faça rir.
Anestesie tudo que sangra.
E volte a levar a vida sorrindo.
Feliz?
Não... eu não disse isso.
Eu disse sorrindo.
Sorrindo de dor, sorrindo de perda,
sorrindo de solidão
no fundo, sorrindo de tudo.
Pra não ter tempo de lembrar
que no fundo
sangramos é disso ...
(De) Pressão.


Bianca

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Bicho Homem


(Mauricio Baia/Xina)

Máquinas de guerra e indumentária
Pra vestir o caçador que, em vez da fera, caça
A sua própria espécie que se encontra encurralada

Desgraça muita e porrada na lata,
Sem terra, enterras na merda
E deixas quem berra na miséria, sede e fome
Bicho mau, bicho mau, bicho homem
Bicho mau, bicho mau, bicho homem

Talvez por dinheiro um dia até explodirias
O mundo inteiro e eu queria ser teu travesseiro
Quando se vês apenas como mais um a chorar

Sempre em busca do prazer do ouro
Quem te interfere perde o couro
Mas te esqueces, teu tesouro é teu coração
E todo mal que o consome
Bicho mau, bicho mau, bicho homem
Bicho mau, bicho mau, bicho homem
Máquina de deuses inventados
Pra lutar contra diabos que o carregam
Pelos quintos do maior conto de fadas

Mascarado, sedutor, endiabrado
Enganas o mais pobre coitado
Que não percebe a grande máscara em que te escondes
Bicho mau, bicho mau, bicho homem
Bicho mau, bicho mau, bicho homem

Tornando escassa nossa fauna e flora
E tudo o mais que tu exploras
Como uma cobra que devora o próprio rabo
Estás em busca do teu fim

Eu digo tudo isso por mim
Pressinto um futuro em que não haverá
Nem sombra de lembranças do teu nome
Bicho mau, bicho mau, bicho homem
Bicho mau, bicho mau, bicho homem


sexta-feira, 14 de maio de 2010

A dança das chuvas...


(aos moradores do bairro Santa Maria - Aracaju)

Danças são danças... nem boas, nem más.
São pedaços de movimento soltos pelo espaço...
Danças são danças, mesmo pequenas, miúdas...
Mesmo imperceptíveis aos olhos do outro.
Mostrando-se imóveis a olho nu.
Danças dançam, mesmo quando não aparecem.

O bairro Santa Maria sequer aparece nos mapas. E a dança de seu cotidiano, invisível e diária, continua... Pé ante pé... debaixo do sol, que enfim voltou, na recontrução do que as chuvas destruíram em sua dança voraz.

No último mês trabalhei intensamente, muito intensamente no suporte aos desabrigados pelas chuvas que  assolaram Aracaju. São barracos, roupas, móveis, vidas inteiras debaixo d'água ou rolando morro abaixo. É água, é lama, é gente sem ter para onde ir. São centenas de famílias com os olhos espantados carregando nos ombros o que sobrou.  Correndo antes que o restante do morro desabe sob suas cabeças e corpos cansados de vida. Pessoas que levam apenas a roupa do corpo e muita fome na barriga, espremidas em abrigos coletivos à espera do sol. Pois em muitos momentos, era tudo o que se podia pedir. Sol. 

O limiar entre  a Psicologia e qualquer outra área humana era tão tênue quanto a diferença sutil entre a dor da fome ou da perda. É tudo dor, diziam... E era. As diversas situações onde já não havia mais nada o que fazer como Psicóloga se multiplicavam a todo instante. Mas a obrigação de fazer alguma coisa enquanto ser humano era evidente em todo momento. De Pessoa para Pessoa. De mão para mão. E de mãos dadas, à espera de um olho de sol. 

Daí a falta de comunicação, daí a demora para atualização do blog. Compreendam. A chuva caiu para todos. Mas essa dança, apenas alguns tiveram que dançar. 

Dançam as águas na Dança das Chuvas de Aracaju...
Nas grandes perdas, nos mínimos ganhos.
Dança o sol pra secar tudo
antes das próximas chuvas voltarem a cair.

Até perguntei à chuva:
Chuva, você é má?
Ela sorriu e respondeu:
Criança, eu sou chuva.
E chuvas precisam chover...

Bianca Becker Lepikson










Cai água, cai barraco...


Desenterra todo mundo...


Cai água, cai montanha...




E enterra quem morreu...






É sempre assim todo verão...




O tempo fecha, inunda tudo...


É sempre assim todo verão...


Um dia acaba o mundo todo...


Derruba o muro, o prédio podre, a casa velha...




Empurra a velha, pega a bolsa e sai batido...


(Música: Cai água, cai barraco. - Biquini Cavadão)


segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Momentos corpo...


Porque o grupo corpo, é corpo....














segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Lembrando uma velha "canção" de Afonso Lisboa....


AURORA DA MELODIA COM O MELODIA DA AURORA. 
Melodia do tempo, tempo do Melodia

Afonso H Lisboa da Fonseca, psicólogo.


...um “ser subterrâneo” a trabalhar, um ser que perfura, que escava, que solapa. Ele é visto – pressupondo que se tenha vista para este trabalho na profundeza – lentamente avançando, cauteloso, suavemente implacável, sem muito revelar da aflição causada pela demorada privação de luz e ar; até se poderia dizer que está contente com o seu obscuro lavor Não parece que alguma fé o guia, algum consolo o compensa? Que talvez queira a sua própria demorada treva, seu elemento incompreensível, oculto, enigmático, porque sabe o que também terá: sua própria manhã, sua redenção, sua aurora?... Certamente ele retornará: não lhe perguntem o que busca lá embaixo, ele mesmo logo lhes dirá, esse aparente Trofônio e ser subterrâneo, quando novamente tiver “se tornado homem”. Um indivíduo desaprende totalmente o silenciar, quando, como ele, foi por tão longo tempo toupeira, solitário --
(F. Nietzsche, em Aurora)


Canta o Melodia, no rádio...
É Estácio...
Há tempos que me deslumbro, e desbundo, com Estácio... Sem pré e sempre que escuto...
Inevitável passar pela cabeça... ‘De novo’, o Melodia, cantando ‘Estácio’...
E me disponho alegremente a escutar...
...
É uma interpretação nova, sutilmente -- mas só sutilmente – diferente.
Com uma cantora... Esta é uma novidade. Com uma cantora...


Desde sempre, o grande no Melodia não é, exatamente, o conteúdo – apesar do fantástico, sempre, das letras. Quase que o conteúdo é sempre um coadjuvante, em termos do Melodia. O grande astro, a grande arte, é sempre a da interpretação. Da elaboração, do refinamento, da sofisticação rítmica da interpretação.
Quando comecei a ouvir o Melodia, ele cantava, Meu nome é Ébano !!! ... E me parecia incrivelmente próprio, já então. Porque era ebânea a voz, a interpretação, do Melodia. Era muito madeira...
Depois a gente percebe que a voz do Melodia pode ser metálica. E depois sai descobrindo que é rococó, é barroca, é unitariamente cortante, é múltipla, e singular, até poder chegar, por exemplo, ao guincho do negro gato (em teto de Zico quente), passando naturalmente, por exemplo, pelo Codinome ‘beijaflor’...
A verdade é que o Melô dispõe desta incrível arte de demonstrar as surpreendentes nuances possíveis do infinito -- precisamente, ou, melhor diríamos, imprecisamente, entre o zero e o um. Parece esta a sua grande arte, movimentar-se, rítmica e poiéticamente, entre o zero e o um. E, por aí, demonstrar que a arte, tanto na arte formal como na existência, só é arte na medida em que a forma pode se dar o infinito como fundo, e, enformar-se, performar-se, perfazer-se, contrastando, contra a indeterminação e o infinito, o contorno de suas provisórias e precárias limitações... Demonstrar a formação, de modo meticulosamente rítmico, surfando e brincando com o incerto, com o indeterminado, com o rigorosamente improvável da potência formativa do possível, poiética... indeterminando que o infinito é tal e qual, tanto entre o zero e o um, como para além do fim dos números...
E lá está todo frescor e todo o incrível vigor, e dignidade enxuta, e marotamente risonha, do Estácio...
Que há cerca de trinta anos escuto o Melodia cantar...
Só que diferente, agora, sutilmente diferente, mas decididamente...

Lembro o comentário de um amigo. O Melodia é legal, mas não inova, são sempre as mesmas músicas...
Verdade...
Parece verdade...
Mas, comigo, eu discordava em algo, que eu não entendia muito bem...
Inicialmente, não sei muito por quê, mas, meramente, porque contraria os meus sentidos, ainda que tenha lógica...
Há uns trinta anos, ou mais, escuto o Melodia, como disse. Desde os tempos em que eu o ouvia, didático, deliciado eu, no rádio, num apartamento de hotel, no cálido início de um verão no Rio,


Sabe gente...



É tanta coisa pra gente saber...
O que cantar 
como andar
onde ir...
O que dizer o que calar...
A quem querer...



Sabe gente...



É tanta coisa que eu nem posso saber...
Sou eu sozinho e este nó no peito...
Já desfeito em lágrimas


Que eu luto pra esconder...





Sabe gente...



Eu sei que no fundo o problema é só da gente
É só do coração dizer Não!



Quando a mente tenta nos levar
P’rá casa do sofrer
E quando escutar uma samba canção...
Assim como...
’Eu preciso aprender ser só...’
Reagir... e ouvir... o coração responder...
Eu preciso aprender a só ser...

(De memória, não sei bem se está correta e completa a letra...)

Só reticências... Por que é certamente impróprio pôr vírgulas, pontos, ponto e virgulas, ou mesmo qualquer tipo de sinal ortográfico numa letra que o Melô canta. Ainda que exista nele uma incrível arte da vírgula, do ponto, da reticência, do ponto e vírgula, dos dois pontos... Invisíveis, implícitos... Mas, decididamente evidentes... A pontuação escrita é a do mundo dado. A interpretação, a interpretação do Melô, é o dar-se alegre do mundo. É o acontecer, que não se dá em contraposição ao acontecido, é a pontuação. O dar-se da pontuação, única, irrepetível. Nada a ver com a pontuação dada.
E é assim que entre o zero e o um existem múltiplas potências, possibililidades, poderes de ser de formas, que querem vir a ser; e, na verdade, existe o infinito...
Existe, em particular, o jogo da incerteza, que o gesto, a gest-ação, vai preenchendo à medida em que, rigorosamente impreciso, evolui como ato, atu ação...
No tempo de uma vírgula existem mil tempos na interpretação do Melodia. Mil jeitos, mil passos e compassos, vividos, dobras e contorções, de um corpo, membros, gestos, alegremente animados.
Não que sejam “mil”... É que são únicos, vividos, singularmente temporalizados, e originais, na sua singularidade e unicidade, na multiplicidade de sua potência sem vergonha...
Na verdade, e especificamente, “dribles de corpo” na consciência (como diria o Chico). E reviravoltas, propriamente, de quem vivo está na, inevitável, decadência do tempo.
Porque tempo e consciência são antinômicos.
A consciência é sempre, e cada vez mais e mais, sem tempo, sem presente, sem presença.
Fazemos concessões à consciência, mas ela é o coveiro do tempo. Do tempo digo como temporalização real, vivida, que é temporalidade encarnada do corpo, da vivência embriagada e dos sentidos... Que necessariamente se dão na embriagues concrescente do vivido... Vivido que é sempre “tomada de inconsciência”, porre de afirmação, e imposição prazenteira da forma dissolvendo-se ritmicamente no infinito da potência como fundo...
Tempo vivido de um corpo, que não se conforma em ser desditado pelo acontecido. Mas que pertinaz e permanentemente, alegre e potentemente, se rebela contra o acontecido, contra o passado; se assume, digere e administra o acontecido, ad-ministra a potência do tempo, gerando-o e regenerando, digerindo e metabolizando a decadência.
E o que seria da vida não fossem os “dribles de corpo” e as re-voltas e re-vira-voltas corpo-ativas na decadência do tempo...
Diz o Chico que o “drible de corpo” é quando “o corpo tem presença de espírito.” (Monumental...). E, corpo, voz, e ritmo do corpo, o Melodia é um... espirituoso... Rigorosamente impreciso, o corpo do Melodia, decididamente, tem presença de espírito. Não apenas o corpo que motoramente dança, mas o corpo que canta. Que canta e dança na embriagues de ritmos singulares, únicos...
Um corpo que dança, que se faz voz e canto; uma voz que dança, um corpo que canta; um canto que, de voz e ritmo, dança, e se constitui em rítmicas, e vividamente vividas, circunvoluções, serpenteamentos, passos e compassos. Animações de um corpo, e da articulação de um corpo, e de cada uma de suas muitas segmentações. Um corpo que musicalmente gesta, anima-se e se alegra em voz – e que voz! -- corpoativa; uma voz que se infiltra capilativamente no corpo que se alegra de meramente existir em sua potência própria e singular... E dança a sua dança.
E quem, de fato, “dança”, então, nos dribles de corpo do Melô, com a bunda no chão, e termina por sucumbir na brincadeira, é a própria, e inevitável, decadência do tempo... Que não resiste à superabundância da emergência rítmica da alegria...
Enquanto o retorno, o eterno retorno, da força do tempo, regenerado, retorna, e, malandramente, segue, sonora e corporalmente serpenteando... Pé ante pé, mão equilibrante e rítmica, maestro do poético da potência do tempo. ... Camisa azul, branca e preta, aberta no peito, contra a pele escura...
Há trinta anos que ouço o Melodia... E se eu vir um disco do Melodia, corro para escutar. Se eu souber que ele vai cantar, não perco...
E vivo o show como a experiência alegre, e não raro eufórica, de um ritual de tempo rítmico, novidade, e de alegria... Um momento de suspensão na decadência do tempo ‘coisa’. Em que cada momento é da ordem e do vigor do outro tempo (temporalidade do tempo que não decai, fonte inexaurível, já dizia Lao Tsé), que dribla e costura a decadência, e vai ao fundo do poço de sua regeneração, e retorna sempre, com água límpida e fresca, em suas serpenteantes e imprecisamente rigorosas, caprichosas, mesuras... E desmedidas.
A decadência do tempo -- sempre tão arrogante e segura de si em suas formas paradas, poderosa, não tem vez com o Melodia -- termina sempre “de bunda no chão”, zonza, com os espirituosos dribles de corpo do espirituoso..

Quando o corpo se anima, a consciência, tão pressuposta soberana, e arrogante, vai se afastando, vai ficando pequenininha, pequenininha, lá embaixo. Tá lá... Mas vai se relativizando, se metamorfoseando, encontrando o seu lugar, e sendo tão adornada pela vivência de movimentos e sonoridades do corpo alegre e vivo. Tanto se relativizando, que não seria reconhecida...
Como se na sua cinzentice se lhes pintasse cores, flores, coloridos diademas, arco íris... Um chapéu de Panamá, um carrinho de mão de madeira, e uma cestinha de frutas coloridas... Como se sua imobilidade começasse a ser abalada e desfeita, liquefeita, e refeita, fundida pela tensão rítmica da atualização da potência do possível na ação dançante...

De modo que, na sua arte, o Melodia vai dando conta, assim, alegremente, da decadência do tempo.

Firme aí, Estácio! Que, pelo menos enquanto o Melô cantar, você não decairá. Um dia decairá, um dia, decerto, decairá... Mas quando for tempo...
E é tempo todo tempo... Para, por fim, decair, inclusive.

A vida muda lentamente, como a cor dos frutos...
A vida muda rapidamente, como a flor em fruto
Mas quando é tempo

E é temo todo tempo, 



Mas não basta um século para fazer a pétala... 
Que um só instante faz, ou não. 
Mas a vida muda... (Gullar).

Regeneram-se e se revigoram as figuras do Melô; e revigoramo-nos e regeneramo-nos nós.
Precisamente isto é o que o Melodia é, um intérprete!
Regeneramo-nos com a regeneração do tempo.
Como aquela “Magrelinha”,

O pôr do sol



Vai renovar brilhar de novo o seu sorriso
E libertar 
da areia preta e do arco íris 
cor de sangue 
cor de sangue 
cor de sangue 
cor de sangue
O beijo meu vem com melado decorado cor de rosa
O sonho seu vem dos lugares mais distantes
Terra dos gigantes
Super homem 
super mosca
super carioca 
super eu 
super eu
Deixa tudo em forma
É melhor nem sei
E não tem mais perigo digo já nem sei
Ela está comigo só eu só nem sei
O sol não advinha 
Baby é magrelinha
O sol nem advinha 
Baby é magrelinha
No coração do Brasil
No coração do Brasil 
Baby é magrelinha
No coração
no coração
no coração do Brasil
Baby é magrelinha
Baby


O Melodia brinca, assim, com as palavras decaídas, com as letras, com as músicas decaídas, com as idéia e inspirações, momentos, decaídos. Com as palavras, letras, músicas em seu decaimento. Porque é simplesmente vivo, e, simplesmente, a sua arte é a de dar-lhes vida. Vida mesmo. Atualizá-las. Atualizarmo-nos. Vivificar-lhes, do fundo do poço da regeneração do tempo. E por dentro de sua carcaça enrijecida vai retorcendo-se e retorcendo, do fundo do poço do tempo, e reanimando-as, enquanto efemeramente nos deleitamos com as suas interpretações.
Um poema, uma poética, são eternos, enquanto haja quem queira, e possa, interpretá-los, atualizá-los.  Ao interpretar, fazê-lo efetivamente, animando de possíveis, sempre. Dar vida, animar, reanimar, regenerar, sempre e sempre, aquilo que lhe é querido, e que é como tudo, e sempre, reivindicado pela decadência, pela degradação, do tempo. E esta é a arte do Melodia, Negro Gato -- safado. Safado da decadência do tempo.
Assim não interessa que repita e repita, e o quanto sempre bem humoradamente repita. Em particular, porque não é repetição nunca. Desde que os tempos possam ser regenerados, e se manifestem em vital, sonora e rítmica, corporal, ação, atualização. Gestação. A potência da gestação da forma, da performance, da performação, contra a decadência do tempo.