FORÇA, E FORMA ESTÉTICAS DE EXPRESSÃO
Música, Canto, Dança, e Ontologia.
Em Educação, e em Psicologia e Psicoterapia Fenomenológico Existencial.
Afonso H Lisboa da Fonseca, psicólogo.
A música, o canto, a expressividade compreensiva, a expressividade compreensiva-e-motora, corpoativas, a dança, são dimensões ontológicas da natureza não humana, do mundo feito pelo homem, do humano em sua especificidade e propriedade. Não são, definitivamente não são, apendiculares ou facultativos. São indispensáveis ao corpo, indispensáveis à existência, indispensáveis à natureza, indispensáveis ao mundo, indispensáveis à qualidade de vida, e à capacidade para a vivência e expressividade das potências, das possibilidades e possibilitações da ação: para a atualização: atualização que configura o processo pelo qual tornarmo-nos o que somos, através da ação. Processo eminentemente fenomenológico e existencial, estésico, estético. De modo que uma educação, tanto formal quanto informal, ou uma pedagogia, que não contemplem efetivamente a otimização dos carecimentos, das sensibilidades e das capacidades musicais; uma educação, e uma pedagogia, que não contemplem a otimização dos carecimentos, das sensibilidades e capacidades para o canto; uma educação e uma pedagogia que não contemplem a otimização dos carecimentos, das sensibilidades e capacidades para a expressividade compreensiva, e para a expressividade compreensiva e motora, corpoativas, e dos carecimentos, sensibilidades e capacidades para a dança são uma educação e uma pedagogia especificamente deficientes e danosas ao humano. Porque o desenvolvimento humano, o desenvolvimento da capacidade para a atualização, demandam estes carecimentos, sensibilidades e capacidades
A música, o canto, a expressividade, e em especial a dança, são de um modo geral considerados na cultura da civilização ocidental como um apêndice da vida humana. Como um entretenimento, como um lazer, uma diversão... Quando não como algo suspeito, marginal, sujo, e até perigoso, pecaminoso...
Perigosos* efetivamente o são. Na medida em que efetivam e desenvolvem a perícia*, a capacidade, para a ação, para a atuação, para a atualização. Através da qual vimos, e fazemos com que o mundo venha, a ser. No modo de sermos da nossa vivência fenomenológica de possibilidades, e do desdobramento de possibilidades.
Mas nisto, exatamente nisto -- nesta arte empírica*, e experimental*, de perigar* --, consiste a característica ontológica fundamental do humano. O modo como, humanos, efetivamente nos constituímos em nossa vida social.
Isto, esta avaliação pejorativa da música, do canto, da expressividade, da dança, é algo de muito próprio, numa cultura que assumiu uma referência 'meta corpórea', metafísica. Até mesmo anti-corpórea, anti-física. Como se pudéssemos ser sem sermos físicos. Como se pudéssemos ser sem sermos corpóreos, corpoativos...
O exame mais acurado de uma Ontologia do Humano -- que considere os nossos possíveis, e as nossas dinâmicas experimentais de possibilitações -- evidencia que, mais do que corpóreos e físicos, somos, sobretudo, seres rítmicos; musicais, expressivos, cantantes e dançantes. Nossa existência, em sua força e forma de expressão, em seu vir a ser, naquilo que somos e podemos, enquanto ser/devir, é, eminente e especificamente, corpórea, física. Aquém do metafísico. E esse físico e existencial é propriamente rítmico. Ou seja, é cantante, musica, e dançante. Expressão. De modo que, corporalmente, fisicamente, fisiologicamente, existencialmente, em nosso ser-no-mundo, somos seres musicais, expressivos, cantantes, e dançantes.
Assim, mais do que um detalhe de nossa condição humana, mais do que algo de supérfluo e apendicular, muito longe de algo pejorativo, depreciativo, o nosso caráter rítmico, o nosso caráter expressivo, dançante e cantante faz parte da essência existencial de nossa condição humana, da expressividades de nossos possíveis, da expressividade de todas as esferas da existência através da qual vimos a ser – pela ação, atualização.
Na verdade, toda a natureza, é ritmo, é dança, é canto. Desde os ritmos de expansão e contração de toda a natureza, de todo o universo, passando pelos ritmos do retorno da finitude e do retorno, que todas as tradições da humanidade souberam compreender, explicitar e codificar em termos de ritual e sabedoria. Os ritmos da lua, o ritmo dos sol, o ritmo da lenta alternância entre noite e dia, os ritmos das marés, o ritmo do ano e de suas estações, o ritmo e formas do vento, do sol. Os ritmos do fogo. Os ritmos dos rios, dos riachos, os ritmos das chuvas, dos chuviscos, dos temporais... Os ritmos dos animais... Das pessoas... Dos grupos, das culturas, das sociedades...
Tudo isto nos dá sempre assim o mundo como ritmo, como canto, como dança...
Intimamente correlativos aos ritmos do mundo, os ritmos do corpo. O ritmo do pulmão e das respirações, os ritmos do coração, o ritmo do estômago, da fome, o ritmo da alimentação, da digestão, o ritmo dos intestinos e da evacução, o ritmos da musculatura voluntária. Os ritmos do sono e da vigília. Os ritmos da ação, da atualização. Os ritmos das relações, os ritmos da vida das pessoas, os ritmos da existência e dos pulsos de seus possíveis e atualizações...
Octávio Paz observa que algo passa diante de nós quando passa o ritmo, e esse algo somos nós próprios. Paulo Leminsky observava em seu Hai Kai primoroso: gesto no movimento... Duas expressões sensíveis, que colocam de um modo muito próprio o tanto e o quanto, ontológicamente, nós estamos envolvidos e atravessados por movimento, movimento que se organiza ritmicamente, e que nos envolve e constitui como ritmo, expressão, canto e dança.
De modo que o ritmo, a expressividade, o canto e a dança, não são algo de facultativo, de eventual, de apendicular ou até de desprezível em nosso mundo, em nosso corpo, em nossa existência. São, na verdade, qualidades e condições de nosso corpo, e de nossa existência. São condições e qualidades de nossa vida, e de nossa qualidade de vida.
Em nada me refiro aqui à dança ou ao canto especializados. O ritmo, o canto, a dança em seus sentidos ontológicos são primordial e basicamente estes enquanto singulares e pessoais, ações, atualizações, expressões de nosso corpo e de nossa existência, em sua singularidade e fluidez próprios. O canto e a dança formais já são modos altamente estilizados e ritualizados destas formas e formações, atualizações, que são os ritmos do mundo, os ritmos do corpo, os ritmos da existência, e da vida social. Na educação, na pedagogia, na terapia, não podem nunca substituir os níveis idiossincráticos e pessoais.
Em sendo assim, ritmo, canto e dança são dimensões ontológicas do humano. E, como tais, são componentes sine qua non, inalienáveis, de qualquer educação humana que considere o corpo e o modo humano de ser. De um modo geral, a educação na cultura da Civilização Ocidental assumiu um caráter abstrato, teórico, de privilégio de funções intelectivas, abstratas, um caráter alienado e alienante do fenomenológico existencial, do corpo, e da existência, da ação, da atualização. Uma tal perspectiva não poderia se dar e se instalar sem uma alienação, igual e concomitante, da ritmicidade, da musicalidade, da cantatividade, da dançatividade, inerentes à natureza, ao mundo, à história, à vida social, ao corpo à existência.
A ritimicidade, a musicalidade e a dança são banidos, então, para um lugar secundário na vida social, na vida das pessoas, e em particular na educação. O que não é o caso nas culturas pré cabralinas do Brasil, nas culturas da África, em especial da África Subsaariana, nas culturas da India e do Extremo Oriente. Em que a expressividade*, música, a dança, o ritmo permaneceram como substratos da vida social, como representativos e propiciativos de participação nos ritmos da natureza não humana, como partícipes dos ritmos do corpo, e das pulsações da existência, como substrato das relações com o sagrado. Propiciando, ao humano o exercício rítmico e efetivo de sua existência, dos misteres dela de tornar-se o que é em seus possíveis.
Os prejuízos da alienação da natureza, da alienação do físico, da alienação do corpóreo, da alienação do existencial, em sua intrínseca e ontológica ritmicidade, expressividade, musicalidade, dançatividade, se refletem diretamente sobre as qualidades da capacidade existencial de atualização de possibilidades, se refletem sobre a nossa qualidade de vida. Sobre a nossa capacidade de atualizarmo-nos, e tornarmo-nos os nossos possíveis. De modo que o ritmo, a expressividade, a música, o canto e a dança, em suas vivências intrínsecas, fazem inerentemente parte de uma educação ontológica; de uma educação que leve em conta as características inerentes ao humano. Fazem inerentemente parte da concepção e método de uma pedagogia fenomenológico existencial dialógica.
Marx[1], muito propriamente, observou que a nossa humanidade carece do carecimento, carece do carecimento como necessidade. Ou seja, Marx nos caracteriza, como humanos, por termos necessidades, carecimentos, humanos. Por termos carecimentos, necessidades de sermos humanos. Para sua Ontologia, o homem rico é, simultaneamente, o homem carente de uma multiplicidade de manifestações humanas da vida. A riqueza humana, em termos antropológicos, se define especificamente pela carência[2]. Pelos carecimentos, pelas necessidades, de sermos humanos. Isto, especificamente, porque nós, humanos, podemos perder naturalmente estas necessidades, estes carecimentos, de sermos humanos. E esta perda dos carecimentos, das necessidades humanas, é, especificamente, o que significa empobrecimento em termos humanos, para a antropologia marxiana.
Perdemos as nossas necessidades, os nossos carecimentos, humanos, o nosso carecimento de sermos humanos -- e com isso empobrecemos, até à miséria existencial e social, não raro --, quando não os atualizamos em nosso ser no mundo. Nossos carecimentos, nossas necessidades de sermos humanos, carecem de ser atualizados, realizados, nas suas relações com o mundo mais ou menos objetivo. E involuem, empobrecem, e tendem à extinção, quando não os atualizamos, modelamos, e desenvolvemos a partir da vivência de suas potencialidades, de suas possibilidades em nossa existência como ser no mundo.
De modo que a educação, a pedagogia, que não contemplam a atuação, a atualização dos carecimentos, a atualização, com a devida preeminência e consistência, de nossas necessidades para a sensibilidade musical, para a expressividade, para o canto, para a dança – não no sentido formal e especializado, repito, mas no sentido idiossincrático e potente --, são uma educação e uma pedagogia para a perda desses carecimentos, do modo dessas necessidades desses carecimentos, específicos e ontológicos de sermos humanos. São especificamente educação e pedagogia para o empobrecimento e para a pobreza humanos.
Nesse contexto é que se inserem a música, a expressividade, a dança, o canto, como recursos terapêuticos experimentais, em psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial.
Primeiramente, é importante entender e enfatizar que a questão primária é a da educação, a de uma pedagogia para a sensibilidade musical, para a expressividade, para o canto, para a dança.
Em segundo lugar, a consideração como tais da música, da expressividade, da dança, e do canto não partem de premissas formais, de premissas técnicas, ou de premissas pragmáticas. Mas de premissas ontológicas, e, como tais idiossincráticas. A estas se submetem todas as outras. Trata-se, sobretudo, da constituição da música, da dança, do canto, como modos de ser que permitem e potencializam uma hermenêutica fenomenológico existencial; a interpretação expressiva das possibilidades presentes na atualidade existencial da pessoa.
A sua expressividade e criatividade existenciais. Trata-se de uma expressividade e aprendizagem em sua empiria do caráter rítmico cantante e dançante da existência, do corpo, das relações sociais, do mundo, da natureza, nas particularidades de seus padrões formativos, performativos, expressivos.
Ao nível do que chamamos de psicologia e de psicoterapia fenomenológico existencial, a expressividade, a música, o canto, a dança, podem ser, e efetivamente são, recursos, nobres -- na verdade fundamentais --, na medida em que propiciam a atualização desses elementos ontológicos fundamentais. A expressividade, a musicalidade, o canto, a dança, contemplam o exercício efetivo dos elementos que são centrais a essas formas de psicologia e de psicoterapia. Quais seja, a expressividade, a expressividade rítmica, musical, no canto e na dança, dos ritmos de nossa vivência de possibilidades e de nossa vivência do desdobramento de possibilidades, na ação, atuação, atualização.
Em sendo assim, temos, como sempre, uma tarefa, em termos da produção cultural na direção da recuperação do sentido ontológico e antropológico da expressividade, da musicalidade, da dança e do canto. No sentido do resgate de uma cultura da expressividade, da musicalidade, do canto, e da dança. Resgate que passa pela exigência da competência e constituição de uma educação e de uma pedagogia que contemplem a expressividade, a musicalidade, a dança e o canto em sua devida preeminência antropológica e ontológica.
Aos psicólogos e psicoterapeutas fenomenológico existenciais resta sempre a expressividade, a musicalidade, a dança, o canto, como recursos psicológicos e psicoterapêuticos privilegiados de constituição de espaços e tempos nos quais as pessoas possam exercitar e desenvolver, idiossincraticamente, as suas capacidades de atualização e superação, a partir da vivência da expressividade, da musicalidade, da dançatividade, da cantatividade dos possíveis, das possibilidades vividas em sua atualidade existencial. A atualização, a expressividade idiossicrática musical, a expressividade idiossincrática pela dança, pelo canto, desenvolvem e contemplam, empírica e experimentalmente, a efetividade da expressividade das possibilidades especificamente existenciais. Potencializando a pessoa como intérprete de seus possíveis. Como intérprete da vivência de suas finitudes, de suas aporias, e dos processos de suas superações.
Notas:
* De perire, Grego, que significa arriscar, tentar.
* De perire, Grego, arriscar, tentar.
* Ver, por exemplo as danças expressivas dos Nativos da Nova Zelândia.
[1] MARX, KARL Manuscritos Econômicos e filosóficos. in MARX. OS PENSADORES. São Paulo, Abril, 1983.
[2] HELLER, Agnes THEORY OF THE NEED IN MARX. London, Alisson & Busby, 1974.
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